Costumam dizer que Buenos Aires e Rio de Janeiro são mundos complementares: o que faltaria em um transbordaria em outro. Experimentei essa sensação ao visitar um dos bares mais interessantes que já conheci, a Florería Atlántico, localizado entre os bairros Recoleta e Retiro.
Para começo de conversa, o que tem a ver uma floricultura com um bar? Ao chegar na rua Arroyo – que fica a poucos metros da estação de trem Retiro –, o que se vê é um cenário de filme europeu. Uma atmosfera tranquila, caminhos em paralelepípedos, casas clássicas e construções de estilo parisiense,pequenos bares e cafés. Numa noite de sexta-feira, é possível sentar-se para ler, conversar um pouco, beber um vinho e,até mesmo,comprar flores! Sim, o lugar já valeria a visita por se tratar de uma loja de muito bom gosto – em que arranjos de flores da estação, velas aromáticas e uma vasta coleção de vinhos dão um clima novelesco e romântico.
No entanto, jamais poderia imaginar que, em seu porão, a Florería esconderia seu “lado Atlántico” com “o melhor bar da América do Sul e um dos cinquenta melhores do mundo”. Isso mesmo: a Florería se transforma em convés de um navio antigo – um bar que aludeaos mistérios do mar e a história de imigração que tanto marca a formação da cidade. Por conta disso, também, a ideia de “bar secreto” – relacionada ao período da Lei Seca nos Estados Unidos nos anos 1920, em que o consumo de álcool era às escondidas. A passagem é feita dentro da loja, por meio de uma porta que mais parece um frigorífico. Uma escada conduz ao “porão do navio” e imediatamente a gente se transporta a uma espécie de “noitada chique”, com iluminação indireta, música alta e pessoas de várias idades e lugares.
O extenso balcão e a variedade de bebidas chamavam a atenção.É um desses bares que você pode tomar um drinque observando os bartenders – jovens “marinheiros descolados” –executando seus coquetéismalabarísticos com maestria. Todos foram muito amáveis. Facilmente podíamos iniciar um diálogo intercultural, já que muitos eram estrangeiros ou de outras cidades e se achavam ali pela experiência de coquetelaria.
Aos poucos fui me dando conta de que Atlántico não era só um nome, mas um conceito que conectava tudo no lugar: o formato e a aparência do espaço, as gravuras de monstros e criaturas fantásticas, as roupas dos funcionários e, até mesmo, o banheiro – cujo som de ondas batendo na praia se traduz em música ambiente. Como conceito, essa temática não se resume a uma estética vazia, mas materializa significados em torno do cosmopolitismo portenho e da própria trajetória do dono, Tato Giovanonni. Para ele, que vive em conexão entre Brasil e Argentina, o oceano aparece em suas criações (tais como um gin com sabor de erva mate e uma cerveja à base de água do mar), como uma espécie de ponte cultural e é justamente essa a sensação que se transmite na Florería Atlántico.
Ao chegar por volta das 22 horas de uma sexta, tive que disputar uma vaguinha em um cantinho do balcão, já que as mesas disponíveis estavam todas reservadas. Se quiser ir com amigos para comer e passar mais tempo sentado é importante fazer essa reserva de antemão ou chegar mais cedo. Não foi o meu caso.
Como não poderia deixar de ser, a carta de coquetéis também traz muito o espírito marítimo do ambiente sem deixar de ser objetiva e sofisticada. As opções estão organizadas em sessões que fazem menção aos países de origem dos imigrantes europeus, como também às criações e histórias autóctones. Na sessão de coquetéis “criollos” fiquei particularmente intrigada com um drinque chamado “Alfonsina”. Era uma mistura inusitada de “cerveza marítima, Fernet menta, hesperidina e café”. Pensei: como, raios, isso poderia ser bom? E porque esse nome, Alfonsina? Daí que soube a história da personagem que o denomina. Alfonsina Storni foi uma escritora argentina que nasceu no fim do século XIX e tinha descendência suíça. Era uma mulher progressista, nunca tendo casado.Mãe solteira,defendeu pautas de liberdade feminina e igualdade de gênero. Escritora, docente e poeta, fez-se notabilizar num contexto dominado por homens. Enferma, em 1938,decidiu pôr fim à própria vida nas entranhas do Mar del Plata.
Achei o drinque perfeitamente poético para minha noite, já que se aproximavam as manifestações do 8 de março.O sabor foi surpreendente. Era incrível como todos os ingredientes se harmonizavam e o café, que antes achara uma excentricidade, parecia fazer todo o sentido na bebida. Como o lugar estava cheio, não pude escolher com calma algo para acompanhar e um bartender sugeriu-me uma porção de portobellos (cogumelos) empanados. Gostei. Não era uma coisa extraordinária, mas estava bem feita e confortável de comer no balcão. Naquele dia, indicavamas pizzas especiais da casa, mas, novamente, o fato de não estar numa mesa atrapalhou.
O outro drinque que experimentei tinha um estilo completamente diferente do Alfonsina. Se chamava “Sainte Marthe” e estava, claro, na sessão de coquetéis franceses. A apresentação era lindíssima, com uma flor laranja pousada majestosamente por sobre a bebida, numa taça fina e delicada. Ao contrário do Alfonsina – que tinha uma pegada mais rústica e forte –, a mistura era bem cítrica, suave e doce. Preferi o Alfonsina.
Depois de algumas horas conversando com as pessoas – muitas delas visitantes de primeira viagem como eu –, a impressão era de que todos estávamos embasbacados com o lugar. Não obstante estar lotado, não houve nenhum problema de interação e tudo estava como que medido na dose certa. Os preços tampouco eram assustadores para um espaço famoso e com tanta coisa a oferecer.
Fomos embora por volta da meia noite. Abri a porta e dei de cara com a loja de flores – calma e bucólica. As ruas tranquilas. Os ruídos do Atlántico já não se notavam. Caminhamos. Enquanto isso, mais jovens chegavam para embarcar noite adentro.
Voltávamos à terra firme.
Florería Atlántico
Endereço: Arroyo 872 – Ciudad de Buenos Aires
De segunda-feira a sábado
https://www.instagram.com/floreriaatlantico/